sábado, 25 de janeiro de 2014

Caloiros do meu país

Em 12 de Setembro de 2003, foi publicada uma crónica minha num semanário para o qual escrevi durante uns anos. Hoje teria que fazer ajustes mas diria quase a mesma coisa. O problema das praxes continua e cada vez com piores consequências. Será que ninguém tem mão nestes selvagens?
Aqui fica novamente a crónica que tem mais de dez anos.

CALOIROS DO MEU PAÍS !


 Um novo ano escolar começou. E com ele há mais uma montanha de caloiros. Caloiros que vão ser aliciados para colaborar com a estupidez da praxe. A praxe foi uma tradição coimbrã, quando Coimbra era uma pequena cidade estudantil. Tudo o resto eram toscas imitações. Hoje em dia a praxe está deslocada, não tem qualquer justificação, é estúpida e selvagem. Não há razão de espécie alguma que justifique a humilhação de pessoas. Pôr os caloiros a quatro, feitos animais, a dizer obscenidades, colocar-lhes bosta na cara, obrigá-los a tirar a roupa ou a simular actos sexuais, mergulhá-los em tanques públicos são algumas das idiotices que os alunos mais velhos fazem aios caloiros. Mais grave. Fazem-no com orgulho e ainda acham graça. Não é assim que se inserem os novos alunos no novo mundo que os espera. O que se passa é perfeitamente lamentável. 

No ano passado houve vários caloiros que se queixaram dos “maus tratos” de que foram alvo. A primeira a ter direito a notícias de destaque foi a aluna da Escola Superior de Saúde de Macedo de Cavaleiros. A aluna queixou-se e fez ela muito bem. Teria feito ainda melhor se se tivesse recusado a participar nas idiotices. Mas, se assim fosse, este problema não teria chegado ao conhecimento de todos nós. Na altura um jovem da comissão de praxes do Instituto teve tempo de antena na televisão. Só perdeu por ter aberto a boca. E que não pense que os que o ouviram são parvos. Claro que considerou tudo natural e inocente e, quando lhe perguntaram se a aluna sofria sanções se se recusasse a ser praxada, ele respondeu com um categórico não. Mas acrescentou que apenas ficaria impedida de participar em actividades académicas. Então quem se recusa a colaborar nestas tristes cenas é penalizado?!  Quem são estes galfarros para punir um(a) colega? Com este caso gerou-se uma polémica que durou meses. Foram trocados “mimos” entre a direcção do Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros e o Ministro Pedro Lynce. Todos garantiram que o sucedido ia ser averiguado e os responsáveis punidos. Prometeu-se “ir até às ultimas consequências”. Quais foram? Que aconteceu aos praxistas que ultrapassaram o limite do aceitável? Como conheço o meu país e os seus habitantes, presumo que tudo tenha ficado por aí mesmo. Daí a minha preocupação ao ver aproximar-se, novamente, a altura das “praxices".  

Em Agosto foi veiculado pela comunicação social que um despacho assinado pelo ministro da Ciência e Ensino Superior autorizou a colocação de uma aluna, que se queixou de abusos praxistas, para outra instituição do ensino superior. Mais. No caso de a instituição não ter vagas para recebê-la, o ministério autorizou a criação de um lugar adicional já que “existe fundamento para que seja atribuído um tratamento excepcional”. Ou seja, quem agiu mal fica na maior e quem foi vítima muda-se. É este o país que temos... É esta a maneira de actuar do Senhor Ministro da Educação... 

 Em Janeiro deste ano Pedro Lynce prometeu legislar sobre as praxes. Mas entre o que os políticos prometem e o que fazem vão muitos milhões de anos-luz. Daí que eu não fique minimamente admirada de nada ter sido feito. Aliás houve denúncias relativamente a abusos nas praxes entre 1997 e 2000 que, pura e simplesmente, foram arquivadas. Por outro lado, os responsáveis dos estabelecimentos do ensino superior também, tanto quanto sei, nada fazem. Excepção feita ao Instituto Politécnico de Leiria que criou o provedor do caloiro. É muito pouco mas é melhor que nada. E, neste país, já não é mau pensarmos em termos de “é melhor que nada”. Gostava de conhecer as propostas que apresentaram o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, o Conselho Coordenador dos Institutos Politécnicos e a Associação Portuguesa de Ensino Superior Particular para o regime disciplinar para os alunos do ensino superior. 

Daí que o meu apelo se dirija àqueles em quem ainda posso (quero poder...) confiar. Jovens caloiros do meu país! Vocês não podem viver a vida sem lutar. Contestem desde que com argumentos válidos. Não vão em carneiradas. Não fiquem calados quando a razão está do vosso lado. Não temam ser diferentes. Não temam dizer não a todo e qualquer tipo de humilhação. Denunciem tudo o que considerem ser um abuso por parte dos praxistas. Os mais velhos só têm mais do que vocês uma coisa – a idade. E mais idade, infelizmente, nem sempre corresponde a mais responsabilidade. Lembrem-se da Sophia de Mello Breyner que diz “Porque os outros se calam mas tu não”. 

Jovens caloiros do meu país! O Dr. Pacheco Pereira escreveu há tempos, a propósito das praxes, que “cada vez mais a única coisa que os estudantes transportam do liceu para a universidade é a sua carga de ignorância”. Embora eu esteja tentada a concordar com ele, peço-vos que me ajudem a provar que tal afirmação não é correcta. Conto convosco.